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  • Foto do escritorFernando Gamito

Um regresso a casa motivado pelo amor. A história do sentimento e da consciência



O sentimento que levou ao regresso a Sines e ao Vasco da Gama e tudo o que veio depois. A história de Márcio Madeira.


O que leva um bom filho a regressar a casa? A resposta é simples: amor. O mais puro sentimento que se nutre por uma mãe e pela terra que o viu crescer. Foi assim que Márcio Madeira regressou ao Vasco da Gama e a Sines, em janeiro de 2015, quando viu a vida pregar-lhe a mais infortúnia rasteira fora dos relvados. O falecimento da mãe levou Márcio a colocar de parte o futebol profissional. Porém, ao contrário do que muitos pensam, essa foi apenas a primeira parte da história que aqui vamos contar. Aquele que outrora jogou no principal escalão com a camisola do Nacional e que foi campeão da Segunda Liga pelo Moreirense, é agora um “feliz amador” e tem como objetivo contribuir para o crescimento do clube que o viu nascer para o desporto rei, através da partilha de conhecimentos e experiências que vivenciou, dentro e fora das quatro linhas.


Na primeira metade de 2014/15, Márcio Madeira representava o Farense, na sequência de duas épocas de alta rotação pelo Portimonense e no Moreirense. Até que o azar tocou à porta. “Depois da doença da minha mãe e do seu falecimento, eu não me sentia em condições de estar no Farense e em conversa com o presidente, Sr. Barão, e o treinador, Abel Xavier, pedi-lhes para ficar em Sines sem treinar. Isto porque as coisas estavam ainda muito a quente e precisava de estar com a família”, confidenciou o médio em conversa com o Bancada. Num mundo do futebol em que tudo é efémero e não há tempo nem para despedidas prolongadas daqueles que deixam mais saudade, Márcio chegou à conclusão que precisava de se recompor da melhor forma possível.


“Se calhar, na altura eu é que não tive a força e coragem necessárias e não fui forte o suficiente para encarar a situação de frente, quis resguardar-me e defender-me. Então regressei a casa para isso. Ao perceber que ia prejudicar o Farense, que não ia estar lá tão cedo, que possivelmente não iria treinar da mesma forma e ia perder o lugar, senti-me na obrigação de lhes dizer para abrirem mão de mim, pois não valia a pena, eu não ia corresponder”, contou Márcio. Do emblema algarvio recebeu palavras de força, cada vez mais raras no estado em que se encontra o futebol português nos dias que correm. “Eles foram fantásticos. Só posso agradecer ao Farense. Eu não tenho a mística que todos os farenses têm, mas é um clube que guardo no coração, por terem facilitado esse processo.”


A dimensão e proporção que a história de Márcio ganhou no panorama do desporto rei português, quer dentro do meio futebolístico, como também na imprensa desportiva, teve por base os valores que regem a sociedade atual, nas palavras do próprio. “Os valores são trocados. Porque isto é o normal: quando estás em sofrimento, ou a fazer um luto, o normal é estar em casa, perto da família, a recompôr-se aos poucos. Isso era o normal, mas na nossa sociedade não existe tempo para isso”, desabafou.


O que fez o jogador do Vasco da Gama? Fugiu à regra. “Eu quis contrariar isso, quis ter o meu tempo. Quando vim para cá, estava longe de pensar que iria ficar aqui. Mas, há medida que os dias foram passando e com o conforto que percebi ter pensei ‘por que não prolongar isto?’. No momento, recebi muitas propostas, até mesmo para a Segunda Liga, mas quase que fazia para não falar com as pessoas. Os valores continuavam a ser iguais aos que se auferia naquela altura, mas eu pensei que o conforto que aqui tinha não era suficiente para eu sair.” E não mais saiu.


Uma história com duas partes: a opção sentimental e a consciente

Após metade de uma temporada que tirou para si próprio para recuperar, Márcio Madeira ainda pensou no regresso ao futebol profissional. No entanto, o panorama tinha mudado drasticamente no espaço de meses. “Quando acabou essa temporada [2014/15], pensei em voltar ao profissional. Mas, aí já teve a ver com o preço de mercado que perdi. Já não valia tanto como há uns meses atrás e os clubes que faziam as ofertas também já não eram os mesmos: passei daqueles que lutavam para subir na Segunda Liga para os que lutavam pela permanência.”


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No fim de contas, quando se toma a decisão de sair de casa para um sítio bem distante, é necessário olhar e analisar para a ‘big picture’, como se diz em inglês. Foi exatamente isso que Márcio fez. “Iria estar muito longe de casa e já não davam um apartamento total… então a minha história tem duas partes bem distintas: a primeira é uma opção minha, apenas e somente sentimental; no fim desse ano é uma opção minha consciente, porque eu não podia sair daqui outra vez, com quase 30 anos, a ganhar os valores propostos. A partir daí, a minha vida tomou outro rumo. Fui estudar, tirei o curso, entrei no mercado de trabalho e hoje em dia sou o responsável da Carglass aqui na zona de Sines”, destacou o jogador agora com 32 anos. “Eu não deixei de jogar [profissionalmente] por não estar bem. Eu estava bem, em condições, e ia fazer exatamente o que fazia até então. Mas, tive que ter uma opção mais consciente, até pelos meus filhos, pela minha família, e pela diferença de valores. Já não compensava.”


Márcio ficou por Sines, a envergar a camisola do clube que sempre ocupou o seu coração e fê-lo com plena consciência de tudo aquilo que iria encontrar pela frente. “Quando tomas uma decisão como eu tomei, tanto a primeira como a segunda, tens que saber que as pessoas vão dizer que estás doente, que estás com uma depressão, depois vais a qualquer estádio e vão chamar-te craque, que tens a mania que jogas… tens que ponderar isso tudo. Que ninguém se vai lembrar de ti mais, que vai haver jogos em que não consegues levantar sequer os pés de tanta ‘porrada’ que levas, que vais ser ofendido, vão falar da tua mãe que já faleceu, que vão tentar destabilizar-te de qualquer maneira… tens que te preparar mentalmente para isso. E foi o que fiz.”


A questão que fica na cabeça de todos e também nas dos amigos de Márcio como o próprio referiu é a seguinte: poderia o médio ter sido melhor jogador do que foi e chegado ainda mais longe? A resposta é negativa e foi o próprio Márcio que a explicou ao Bancada. “Não tenho saudades da vida que tive porque tive, gozei o máximo que pude. Lutei até à exaustão, tudo o que fiz e não consegui fazer foi por culpa própria. Não posso culpar nem empresários, treinadores, clubes, oportunidades, falta de sorte, nada. Se não cheguei lá foi por culpa minha e por ter a infelicidade, ou felicidade, de ter apanhado grandes jogadores para a minha posição. No Nacional, os meus principais concorrentes a um lugar eram o Mateus, o Candeias e Rondón, todos eles internacionais. Eu não joguei mais porque eles eram melhores que eu. É a mais pura das verdades”, reconheceu.


Da Segunda Liga até à segunda divisão distrital. Imagina as diferenças?

Quando deixou o Farense e depois começou a jogar pelo Vasco da Gama, equipa na qual fez a formação, Márcio Madeira deu um salto de gigante no que diz respeito às condições com as quais se deparou. “Cheguei aqui há três anos e estávamos no quarto ou quinto lugar da segunda distrital, que é a última divisão que existe no nosso meio. Nem se desce de divisão… abaixo só o Inatel, mas não é uma competição da federação. Amadorismo puro, campos pelados e encontrei muitas dificuldades, mesmo a nível de organização, nós não almoçávamos, juntávamo-nos todos para ir jogar. Não tínhamos equipamento igual para todos treinarem, o equipamento de jogo era já muito antigo, debilitado.”


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A visibilidade que o retorno do filho a casa gerou foi benéfica, em larga escala, para o emblema de Sines, que aos poucos foi trilhando o reerguer. “Nessa parte, a minha história veio trazer ao Vasco da Gama publicidade e visibilidade e houve muitas pessoas que se quiseram associar a isso, seja por solidariedade ou amizade, e apoiaram-nos. Ofereceram-nos equipamentos, a cidade juntou-se mais ao clube e nesse ano ainda discutimos a subida de divisão até final, num jogo em casa com estádio cheio, algo que não pensei ver a acontecer em tão curto espaço de tempo”, salientou o médio.


Quando regressou ao clube no qual deu os primeiros passos, Márcio reencontrou caras conhecidas e do atual plantel do Vasco da Gama “são quatro os jogadores que fizeram a formação” com o médio. Atualmente na quinta posição da tabela classificativa da primeira divisão distrital da AF Setúbal, o Vasco da Gama continua o crescimento sustentado num projeto que tem dado frutos e que viu o clube terminar a temporada passada em quarto lugar. “Se quando cheguei me dissessem que pouco mais de uma temporada depois ficaríamos em quarto lugar na primeira distrital eu diria que era impensável. Entretanto, os melhores jogadores da zona quiseram juntar-se à causa e abdicaram de receber, porque aqui todas as equipas pagam, mas no Vasco da Gama ninguém recebe. A malta que estava a ganhar os subsídios por jogar fora abdicou disso”, reiterou Márcio.


Substituições com dedos, espanto com caneleiras e a cicatriz que deu direito a camisola

Agora, é tempo para o bizarro que se encontra pelos palcos das distritais portuguesas. Márcio já pisou relvados do principal escalão, da Segunda Liga, mas é nas divisões secundárias que estão as histórias mais curiosas que o futebol tem para contar. Até as substituições podem ser mais complicadas de efetuar do que aparentam. “Esta época fui jogar ao campo do Beira-Mar de Almada e ao intervalo descobriram que não havia placa de substituição. As alterações tinham que ser feitas com os dedos… o árbitro assistente fazia substituição à antiga, ou seja, tinha que utilizar os dedos para sinalizar os números dos jogadores que saiam e entravam”, contou Márcio ao Bancada.


Então e já conheceu alguém que ficou espantando ao vislumbrar uma caneleira? Pois bem, isso também já aconteceu… tudo por culpa do carbono. “Houve um rapaz que jogava no Lagameças, salvo erro, e durante o jogo levei uma pancada, fiquei com a caneleira à mostra e o rapaz ficou tão abismado de ver uma caneleira de carbono que a reação dele foi apanhá-la e estar um ou dois minutos a bater-lhe e a perguntar se o que lá estava escrito era gravado. ‘Mas, isto não se compra... se eu for à Sport Zone posso comprar umas assim?’, perguntava ele. E eu a responder-lhe que não.” Essas pertenciam a outros palcos e outros tempos.


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No entanto, e por tão estranho que pareça, nenhuma dessas foi a história mais caricata que aconteceu a Márcio, entre marcações diretas, campos em que as balizas estão tortas, em que as linhas não se vislumbram e buracos no meio dos relvados sintéticos. “A situação mais difícil que me aconteceu aqui foi uma vez em que um rapaz, que tinha visto a reportagem que a ‘SportTV’ fez comigo na altura, me disse que se identificava comigo, porque também tinha passado por muito. E que queria a minha camisola no final do jogo, mas eu disse-lhe que nós não podíamos dar camisolas. Ele depois vira-se e diz ‘eu tenho uma história como a tua. Roubaram-me um rim’. E nesse instante levanta a camisola e tem uma cicatriz de cima a baixo… depois, ele contou-me a história com todos os pormenores e eu dei-lhe logo a minha camisola, tive que mandar fazer outra de propósito. Com uma história daquelas não tinha como não a dar.” E então lá o Vasco da Gama ficou com uma camisola novinha em folha.


O futuro passa por Sines

Numa fase em que luta por conseguir ser o melhor marcador da primeira divisão distrital de Setúbal no final da época, algo “difícil de conseguir pelo Vasco da Gama”, Márcio Madeira não tem dúvidas quanto ao que o futuro lhe reserva. “Vou continuar a jogar aqui. Penso que seria um egoísmo tremendo da minha parte se deixasse de jogar sem partilhar a experiência que vivi fora daqui, porque os miúdos merecem, têm muita sede de saber o que eu experienciei e penso que é muito importante partilhar esse conhecimento e ajudá-los a crescer também. A nível profissional e desportivo, sem dúvida que o meu futuro vai passar por aqui.”


O telemóvel de Márcio continua a tocar, aqui e ali, com ofertas de equipas da zona que sobem ao Campeonato Nacional de Seniores, mas o sineense é “preto e amarelo. Sempre fui, representar Sines e o Vasco da Gama é uma alegria enorme”. Em termos de meta de idade para pendurar as chuteiras, o fim da carreira chegará quando as pernas começarem a ceder e o rendimento deixar de ser aquele a que tem habituado tudo e todos.


“Vou deixar de jogar quando sentir que já não estou a render o suficiente. Não estou preparado para ser mais um. No dia em que acabar um campeonato com quatro ou cinco golos, que jogue e não execute bem os livres, ou não aguentar os 90 minutos, eu paro por mim. Nunca aqui eu vou roubar o lugar a um miúdo que eu veja que está para explodir. A minha carreira está feita profissionalmente. Agora sou um amador feliz, jogo apenas e somente pelo prazer. Quando achar que já não tenho condições, não me vou arrastar, porque penso que não era justo para a minha carreira, pelos sítios onde estive e para as pessoas que conheci, eu ser mais um. Não vou jogar só para me autosatisfazer, não mereço isso e aí termino”, confidenciou ao Bancada.


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É na continuidade do crescimento que o Vasco da Gama tem vindo a conhecer que Márcio pretende continuar a trilhar o seu caminho, entre os livres batidos na perfeição e o Municipal de Sines repleto de adeptos a apoiarem o clube da cidade. “Com o projeto que temos em andamento, e que ainda só vai a metade do que pode ser, penso que daqui por uns anos podemos facilmente lutar por subir de divisão e se formos ao CNS ainda vão mais pessoas ao estádio e o crescimento do Vasco da Gama passa por isso, com miúdos daqui, sem empresários. Acredito que estes miúdos daqui por dois, três anos, queiram eles cá ficar, têm condições para jogar no CNS e sair daqui para outros clubes, porque eu também quero que eles experimentem aquilo que eu já vivi.”


Como todas as boas histórias deixam uma lição a aprender, é com um conselho do próprio Márcio Madeira que terminamos esta viagem, em palavras que abordam a escolha entre sair da zona de conforto para representar um clube de longe, com os valores auferidos no futebol por estes dias. “Se fores novo, aconselho-te a ir. Se tiveres 30 anos, já não te aconselho a ir. Dou esse conselho a todos os meus colegas hoje em dia. Se forem jovens, não olhem para o dinheiro, vão à procura do vosso sonho. Vão experimentar. Mas, se tiverem mais de 27, 28 anos, não vão, optem pela estabilidade familiar, que é muito mais importante, porque o futebol é uma passagem de 10 a 15 anos.”


*Texto originalmente publicado em Bancada.pt a 19 de março de 2018.

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